sexta-feira, 1 de maio de 2009

Resenha: Crepúsculo dos Deuses



Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, Estados Unidos, 1950) é um filme sobre como um roteirista de segunda categoria acabou morto numa piscina - de uma mansão decadente e esquecida em Hollywood. Antes que venham os gritos de reprovação, não, isto não foi spoiler, tal informação é dada nos primeiros minutos do filme. O que já levantou minhas orelhinhas. Um filme que começa com a narração de um protagonista morto é um filme que merece ser visto. Claro que o fato de Billy Wilder assinar a direção já me faria prestar atenção redobrada.


A primeira cena são vários carros patrulha se dirigindo à cena de um crime. Vemos policiais e a imprensa sobrevoando o cadáver como um enxame de marimbondos. A voz grave do roteirista Joe Gillis (William Holden, fantástico no papel) narra os acontecimentos que culminaram na sua morte trágica. Seu corpo jaz boiando numa piscina, com dois tiros nas costas e um no estômago.


Seis meses antes de sua morte, Joe Gillis estava afundado em dívidas. Três meses de aluguel atrasados, assim como a prestação de seu carro. A cobrança logo chega, mas o arguto Gillis já previra isso e deixara o carro estacionado em outro lugar. O filme alterna entre a narração do protagonista e os diálogos dos acontecimentos passados. É um recurso narrativo elegante, adoro narrações no cinema, mas geralmente elas são mal feitas. Mas não essa aqui, ah, definitivamente não. Ponto para os roteiristas do filme (Charles Brackett /Billy Wilder / D.M. Marshman Jr.), que souberam usar esse recurso com muita propriedade.


Joe Gillis tem um roteiro supostamente original, que apresenta para um produtor da Paramount, seu último grande contato no mundo dos cinemas. Bem, o roteiro foi destruído logo depois por uma assistente do produtor, Betty Schaefer (Nancy Olson), que classifica o escrito como de mau gosto. Bem, Gillis saiu da Paramount sem emprego, sem dinheiro e sem esperanças.


Sempre há como piorar, Joe Gillis que o diga. Enquanto volta para casa deu de encontro com os cobradores, que querem o dinheiro ou as chaves do carro. Gillis não está disposto a dar nenhum dos dois, então a perseguição começa. Numa manobra rápida, o roteirista consegue entrar no estacionamento de uma grande e supostamente abandonada mansão. O lugar é perfeito para esconder o carro da cobrança.


No momento em que vi a cena de Gillis no pátio da mansão pensei em “Grandes Esperanças” de Charles Dickens. Gillis pensou a mesma coisa. Imediatamente ele compara a mansão à obra imortal do escritor inglês. “Por que chegou tão atrasado? Por que me fez esperar tanto tempo?”, diz uma voz por entre cortinas de bambu, no andar mais elevado da grande casa. Oh, se alguém ainda tinha alguma dúvida da genialidade dessa obra, acho que essa cena acabou com ela. É inacreditável a semelhança, proposital, dessa cena do filme com a chegada do pequeno Philip Pirip na casa de Miss Havischam. Quem faz o papel de Estella nessa belíssima citação cinematográfica é o mordomo Max von Mayerling (Erich von Stroheim). “Por aqui”, diz o mordomo secamente. Essas três linhas de diálogo dialogam com muita maestria com o livro de Dickens, e mostra o preparo e a cultura dos idealizadores desse filme.


Norma Desmond (Gloria Swanson), a Miss Havischam de Crepúsculo dos Deuses, era uma velha e decadente atriz, que já fora muito famosa nos tempos do cinema mudo, “nos loucos anos 20”. Assim como a amargurada mulher do romance de Dickens, Desmond vive as glórias de um passado que não retornará. Nas palavras de Gillis, “ela ainda acenava para uma fanfarra que há muito já passara”.


Como vimos no começo, que destrói qualquer expectativa tola de um Happy End, é nessa casa que Gillis foi assassinado. Os motivos aos poucos se desdobram nas próximas uma hora e meia de projeção. Aos poucos, mesmo contrariado, ele passa a fazer mais e mais parte na vida da atriz de cinema mudo e seus amigos inexpressivos, carinhosamente chamados de “bonecos de cera”. Assim como Desmond, apenas fracas e decadentes projeções de uma época que não existe mais.


A fotografia do filme é belíssima, a composição das cenas na mansão conseguem transmitir aquela melancólica beleza de algo velho, “out of joint”, que ainda permanece de pé, inalterada, enquanto o mundo é outro. A opulência de alguns cômodos da casa contrasta de maneira primorosa com o mau estado de conservação do todo. Quando a beleza aparece na casa de Desmond é apenas para lembrar que essa mesma beleza já não está mais lá.


O filme é repleto de cenas memoráveis, como a de Norma Desmond mendigando um filme para um velho amigo, o famoso diretor Cecil B. DeMille, interpretado por ele mesmo! O roteiro idealizado por Desmond era pobre, não se enquadrava em como os filmes passaram a ser feitos com o advento da gravação de voz. Nas palavras de DeMille, “Norma, por que não se senta aqui e observa? Você sabe, os filmes mudaram um bom tanto”.


Esse filme é um dos raros exemplos em que o nome em português ficou bem melhor que o original. Na verdade, a única obra que eu conhecia até então era o livro de Isaac Asimov - 827 Era Galática (Pebble in the Sky) – por sinal, de 1950 também.


Os antigos deuses da era do cinema mudo se tornaram pouco mais que inexpressivas estátuas de cera, vendo o mundo girar e girar com suas caras e bocas exageradas, envoltos num silêncio melancólico. A brusca mudança de paradigmas no cinema acabou com a carreira de muitos astros, que não conseguiram se adaptar ao novo jeito de se fazer cinema. Crepúsculo dos deuses é um filme que retrata o que restou desses atores, de uma forma poética e refinada.


O filme ganhou o Oscar de 1951 nas categorias de melhor direção de arte - preto e branco, melhor trilha sonora e melhor roteiro, além de ter concorrido nas categorias de melhor filme, melhor diretor, melhor ator (William Holden), melhor atriz (Gloria Swanson), melhor ator coadjuvante (Erich von Stroheim), melhor atriz coadjuvante (Nancy Olson), melhor montagem e melhor fotografia - preto e branco.


Um filme imperdível para amantes do bom cinema. Mais, Crepúsculo dos Deuses é uma aula sobre as técnicas narrativas do cinema e seu passado. 5 estrelas, sem dúvida alguma.

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